A origem histórica da actual Confederação Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto está já perto de cumprir o seu primeiro centenário. É uma construção colectiva ao longo de gerações que remonta a 1924, quando se realizou um primeiro «Congresso das Sociedades de Recreio» de âmbito regional, no qual foi fundada a «Federação Distrital das Sociedades de Educação e Recreio de Lisboa». Um dos principais obreiros desse congresso e dessa federação foi o delegado da Academia de Recreio Artístico. Chamava-se ele Júlio Silva e foi seguramente uma das figuras mais prestigiadas do movimento associativo português, na primeira metade do século XX. Passaram agora, em janeiro de 2022, 150 anos do seu nascimento.
Júlio Silva nasceu no dia 20 de Janeiro de 1872, em Lisboa, ao que parece na Rua do Arco do Marquês de Alegrete, onde a família vivia. Seu pai tinha o ofício de cocheiro (condutor de carruagem a cavalos). Mas Júlio seguiu um caminho diferente. Era ainda um rapazola, menor de idade, quando abraçou a carreira de empregado do comércio. Começou por ser marçano, numa loja de fazendas, no Rossio. Tornou-se depois caixeiro e por fim ‘guarda- livros’ (contabilista).
Segundo dizia à época um dos pioneiros no estudo do associativismo em Portugal, Costa Goodolfim, “a classe comercial, uma das mais numerosas, é aquela que mais tem compreendido o princípio da associação, e a tem firmado em bases mais sólidas” [Goodolfim (1876), A Associação, p.71].
Esta “classe” deu de facto origem a grandes colectividades, algumas das quais ainda hoje estão bem activas, como as associações mutualistas dos «Empregados no Comércio e Indústria» (1854) e dos «Empregados do Comércio de Lisboa» (1873), além do «Ateneu Comercial de Lisboa» (1880) e a «Tuna Comercial de Lisboa»(1903).
Júlio Silva é um exemplo. Só a nível de sociedades recreativas, ele foi presidente da Academia Recreio Artístico, da Sociedade da Matinha e da Academia Recreativa de Lisboa. Numa vertente mais focada na educação, foi presidente da sociedade A Voz do Operário.
No campo da solidariedade social, foi presidente das associações mutualistas «Inabilidade», «Montepio Comercial e Industrial» e «Fraternidade Peninsular». Além de ter sido presidente da Federação Nacional de Associações de Socorros Mútuos (encerrada pela ditadura em 1941). Júlio Silva foi também presidente do Albergue dos Inválidos do Trabalho e da Liga Pró-Moral (uma associação de apoio à infância, no bairro da Graça). Foi ainda vice-presidente da Associação do Registo Civil, função que o levou a ser um dos organizadores do congresso internacional do livre pensamento que se realizou em Lisboa, em 1913.
No final da vida, a associação a que mais se dedicou terá sido certamente os «Inválidos do Comércio». Foi um dos seus principais fundadores, em 1929. E foi o activo vice-presidente da sua direção desde o início até cair doente e falecer, em 1940.
Como sublinhava César Nogueira, outro pioneiro ‘historiógrafo’ do associativismo em Portugal, “a acção de Júlio Silva manifestou-se em todas as modalidades do movimento associativo, quer nos seus aspectos sociais, económicos, políticos como recreativos e artísticos. Mas onde ela mais se salientou foi na antiga Associação de Classe dos Caixeiros de Lisboa” [Pensamento, 15/12/1940, p.18]. Efectivamente, Júlio Silva foi um dos principais fundadores desse sindicato em 1906 e seu “líder histórico”. Salientou-se à época na luta que conquistou o direito a um dia de folga semanal para os trabalhadores do comércio.
Esta evocação pretende apenas transmitir uma vaga ideia da pessoa concreta que assumiu a tarefa de ser o primeiro presidente da direção da antiga Federação das Sociedade de Educação e Recreio, estrutura que serviu de embrião à actual Confederação Portuguesa de Colectividades. Júlio Silva exerceu esse cargo entre 1924 e 1926, ainda no tempo da 1.ª República, e de novo em 1930, já sob a ditadura militar.
Em 1930 regressou também à presidência da Associação de Classe dos Caixeiros de Lisboa, contribuindo para a defesa da liberdade de associação sindical quando esta estava sendo amordaçada. O seu sindicato foi um dos que foram dissolvidos por recusaram submeter-se ao sistema corporativo instaurado em 1933.
Júlio Silva deu a cara pela oposição à ditadura. E manteve-se até ao fim da sua vida como uma voz empenhada em promover a unidade e a democracia no movimento associativo – e o papel fundamental que este desempenha na sociedade. A memória desta figura ímpar perdura evocada em várias sedes associativas na cidade de Lisboa: N’uma placa inaugurada em 1941, n’A Voz do Operário; num medalhão com o seu retrato, também de 1941, na Confederação Portuguesa das Colectividades; numa placa, cremos que de 1943, encimada por uma grande fotografia de Júlio Silva, na Academia Recreio Artístico; e num retrato dourado em baixo relevo, de 1952, nos Inválidos do Comércio.
Edgar Coelho
Last modified: 8 de Fevereiro, 2022